"Quando Transgredimos a ordem, o futuro se torna respirável”

Há sete anos o Grupo Xingó, vem desenvolvendo um mapeamento do que nomeamos territórios de resistência, no interior do Estado de São Paulo, a partir da circulação de seus trabalhos por comunidades rurais, quilombos, cooperativas de catadoras de resíduos e assentamentos de movimentos sem terra. Espaços de resistência, que em sua maioria, nunca receberam atividade artística. Nos últimos quatro anos, fomos convidando parceiros de outros coletivos de teatro para circularem conosco nesses espaços, por acreditarmos que a troca de experiências com essas e esses trabalhadores, envolvidos em movimentos sociais de luta, é fundamental tanto para alimentá-los de nossa cultura aguerrida, que se dispõe a contribuir com o imaginário de nossa classe, quanto para os grupos que se posicionam à esquerda, fazem teatro combativo, e muitas vezes não conhecem a realidade das lutas dentro desses espaços, distantes da capital.

Curto circuito é uma experiência coletiva. Um festival comunitário e de troca, que tem como objetivo principalmente o fortalecimento de espaços e grupos que se colocam em luta pela classe trabalhadora, a partir de suas ações e trabalhos, em contato. Um festival itinerante, em assentamentos rurais e espaços de resistência, em que coletivos de teatro, dança e música, inserem-se no cotidiano dessas comunidades por um ou dois dias, dormem nas casas desses trabalhadores, cozinham juntos, participam de atividades dos espaços e apresentam seus trabalhos para apreciação e debate coletivos.

Em 2015, o Grupo Parlendas teve a honra e o prazer de ir à Cruzada Teatral, um dos festivais mais importantes de Cuba, que completou 25 anos e que mantém desde seu início esse mesmo formato, em que grupos de diferentes países viajam juntos em uma grande cruzada, de Guantánamo até Baracoa. A população das comunidades se responsabiliza pela hospedagem solidária e alimentação dos artistas, enquanto os coletivos apresentam seus espetáculos e shows, as tardes e noites, para toda a comunidade, em praças, escolas e bairros. Como as comunidades se repetem todos os anos, houve, em Cuba, essa incrível construção de laços tão fortes que as próprias comunidades nos recebiam com teatro, dança e música, já de grupos nascidos desse movimento de troca. Adultos, que desde pequenos, viram teatro.

A realidade cubana é diferente da nossa, mas notamos inúmeras semelhanças em nossa trajetória mambembe de escolher não apenas a apresentação de nossos trabalhos como foco, mas a pesquisa da história oral, o convívio com as comunidades, a troca de experiências, o cozinhar junto, o cultivar, o celebrar da cultura como cultivo, como cotidiano, de forma que cada vez mais aproximemos público e atuadores, nos reconhecendo enquanto trabalhadores, enquanto seres-humanos, dispostos ao encontro.
Em 2018 fizemos a primeira edição do Curto Circuito e foi um sucesso absoluto. As prefeituras locais se envolveram na realização cedendo apoios diversos, as comunidades se integraram aos eventos e atividades e tudo foi muito melhor do que esperávamos. Agora, parece ser nossa responsabilidade não deixar essa fagulha cultural se apagar. As crianças e jovens esperam ansiosas uma nova programação, com grupos de referência e de trabalho reconhecidos, com espetáculos divertidos, com discussões acaloradas sobre crítica e estética com trabalhadores que sempre foram apartados dessa realidade cultural.

As práticas e trabalhos comunitários perdem sentido se os mesmos trabalhadores ligam suas televisões em seus barracos e casas e consomem o lixo produzido cuidadosamente pela indústria cultural, que continua reproduzindo o machismo, o racismo, a intolerância, o preconceito, o fundamentalismo religioso. Só construiremos uma outra sociedade, se a cultura-cultivo de nossos trabalhadores for também “sem veneno”, se nossos trabalhos produzidos para fomentar outros pensamentos e levantar as contradições, puderem também chegar nessas pessoas.

Nossa luta é a mesma e o encontro da cidade com o campo é um brinde de significâncias milhares. No campo, sentem-se lembrados, importantes, acolhidos, não mais tão apartados de tudo que há na capital-luz que é sempre inacessível.

O Festival de cultura CURTO-CIRCUITO busca um circuito em ‘contra-fluxo’, em comunidades rurais, escolas e assentamentos, movimentos sociais, espaços em que a grande maioria das pessoas nunca teve acesso a atividade artística de especie alguma. São para esses trabalhadores, apartados de sua própria cultura, submetidos a uma rotina intensa de trabalho e que, ainda assim, se movimentam em suas lutas, que queremos realizar nossa arte. Adultos, idosos e crianças sedentos de um espaço de convívio, de um acontecimento que não seja a tela ligada das novelas ou os aplicativos de celular. Nos assentamentos, os espetáculos por vezes são seguidos de roda de fogueira e cantorias, organizadas em parceria com a comunidade e que proporcionam momentos de troca de histórias, de bate-papo e de debates sobre poética, linguagem e trabalho, fundamentais para manutenção das pesquisas de cada coletivo que participar dessa viagem.

As estradas de terra, as dificuldades de chegar em cada localidade, as diferentes culturas-cultivos de plantios, trabalhos, artesanias, as dormidas em escolas, currais, casas, as organizações diárias na preparação dos alimentos, das apresentações… Tudo é parte desse festivo, desse encontro de culturas. Desse encontro entre campo e cidade, numa diversidade de pensamentos e de saberes. O contato entre saberes tão diferentes é fundamental para criação de algo realmente novo, que não é novidade, mas que nasce do que é antigo, do que permanece.