Os Guarani denominam os lugares que ocupam de tekoha. O tekoha é, assim, o lugar físico – terra, mato, campo, águas, animais, plantas, remédios etc – onde se realiza o teko, o “modo de ser”, o estado de vida guarani. Engloba a efetivação de relações sociais de grupos macro familiares que vivem e se relacionam em um espaço físico determinado. Idealmente este espaço deve incluir, necessariamente, o ka’aguy (mato), elemento apreciado e de grande importância na vida desses indígenas como fonte para coleta de alimentos, matéria-prima para construção de casas, produção de utensílios, lenha para fogo, remédios etc. O ka’aguy é também importante elemento na construção da cosmologia, sendo palco de narrações mitológicas e morada de inúmeros espíritos. Deve ser um lugar que reúna condições físicas (geográficas e ecológicas) e estratégicas que permitam compor, a partir da relação entre famílias extensas, uma unidade político-religiosa-territorial. 

Em 2015 e 2016, o Grupo Xingó esteve intensamente envolvido em obras e reformas, na busca de transformar nossa casa em um espaço de pesquisa e treinamento, que possibilitasse um contato com a natureza e que tivesse condições de receber outros coletivos pra estudos de consciência corporal, dança, música e teatro. Uma sede de trabalho que se parecesse mais com uma “casa de vó”. Um espaço de acolhimento e trabalho, com horta, biblioteca, sala de ensaio, cozinha, sala de música, em ambientes integrados que funcionassem simultaneamente e pudessem somar ambiências em um trabalho comum.

Nosso Tekoha foi conquista coletiva de mulheres e homens que passaram mais de dois anos entre troca de piso, reforma do telhado, construção de armários, instalação de som, feitura de uma cozinha externa, plantio da horta, organização do escritório, etc. Nos tempos em que estamos está cada vez mais difícil manter um espaço. Pra nós, a dança, o teatro, e esse trabalho tão profundo de educação somática e de consciência, nos faz perceber o espaço como parte de nossos corpos, de nosso trabalho. Transformar os corpos do espaço e os nossos. Sem verba para alugar outro espaço de ensaio e sem caber em outros espaços já cheios de regras de condutas, decidimos abrir mão da casa-padrão-TV-sala-sofá, para configurar no território de morada um espaço permanente de pesquisa. Nós vivemos dentro dela, e ela recebe inúmeras(os) aprendizes, coletivos e artistas, em formatos diversos: ateliês, residências, imersões, espetáculos, oficinas, turmas regulares etc.

Não demorou para, na prática, compreendermos como essa escolha alterava nossas rotinas, nossos pensamentos e nossos corpos. Comer em coletivo. Faxinar junto. Produzir ao mesmo tempo. Plantar e colher. Cuidar. Habitar. Residir. Compartilhar. Cozinhar. Lavar. Estender os corpos nos varais do cotidiano… Ano a ano, fomos praticantes dessa jornada única: nem tripla nem dupla, total. A totalidade dos nossos tempos consumidos com a criação, com a maternidade desse novo espaço-grupo-pensamento-obra. O cotidiano de uma casa potencializado em treinamento para investigação de poéticas e linguagens revolucionárias.

E aos poucos, quando abrimos as práticas no Tekoha, vimos nascer uma escola viva: experiências e trocas intensas numa pedagoginga cheia de afetos, que foi aos poucos tornando-se um modo de vida. Um estado de ser. Uma consciência nova e maior do sentido da palavra atuação. Fomos, em 2017, o único espaço gratuito de dança-teatro na zona leste, com três práticas abertas à aprendizes de todas as idades: Balé, Danças Brasileiras e Contato Improvisação; Não é pouco. Além dos ensaios de grupos; apresentações de cenas, intervenções ou pequenos shows; ateliês de culinária e artesanato; e aulas de música.

Na zona Leste os espaços culturais são pontos de encontro e de potência. Articular um espaço, com trabalho de pesquisa em dança contemporânea que, hoje, se encontra às vezes em poucos espaços centrais da cidade e cobrando preços inacessíveis, parece fundamental.

Histórico:

Nos últimos cinco anos, desde que abrimos a casa, experimentamos inúmeros formatos e modos de funcionamento, tendo realizado até agora: Festas Xingó de Variedades; Encontros com mestres; Apresentações de solos de dança; Imersões de treinamento; Hospedagem ou residência artística com os convidados: Sérgio Farias, Clara Moura e Cláudia Funchal; Ateliês Culinários de Compartilhamento de Saberes com Margarete Siufi, Beatriz Tratenberg, Cláudia Funchal e Nilda Miranda; Ensaios do Grupo Xingó; Ensaios da Trupe Rosa Vermelha; Imersões de treinamento com os grupos: Coletivo Negro, Grupo Dolores, Buraco D’Oráculo, Grupo Clariô, Cia. Diversidança, Núcleo Avoa, Grupo Parlendas, Cia. dos Inventivos; Cia. Rogéria Zago; Debates com Marianna Martins Monteiro, Alexandre Mate, Terezinha Ferrari e Beatriz Tratenberg; Oficinas de Dança Popular com Romualdo Freitas; Práticas de artesanato em couro com Natália Siufi e Romualdo Freitas; Oficina de Manipulação de bonecos com Danilo Cavalcante; Prática em Danças Brasileiras com Tião Carvalho e Natália Siufi; Práticas de Balé com Mônica Caldeira; Práticas de Contato Improvisação com Erika Moura; Exibição do documentário História de Retalhos; Exibição do documentário Mamulengo de Mestre; Reuniões de condomínio; Reuniões de grupos; Prática de Terapia Corporal Ayurvédica; Prática de Auriculoterapia e Magnetoterapia; Lançamento do livro de cordel: Mamulengo da Folia e outras histórias divertidas, rir ainda é o melhor remédio.

Ou seja, mais de trezentas pessoas da categoria artística estiveram por aqui, nos últimos dois anos, entre festas, apresentações e atividades abertas. Pessoas comuns, não ligadas à atividade artística, também são frequentadoras de atividades e calculamos uma faixa de quinhentas pessoas diferentes, entre artistas, moradores do bairro, público e pesquisadores. Isso sem ter uma verba pública que pudesse custear nossa manutenção mínima. Em 2016 fomos contempladas com a 21 edição do Fomento a Dança, que deu materialidade para várias das práticas e possibilitou a abertura de um “espaço permanente de pesquisa” com inscrição de aprendizes/atuadores. O projeto foi um sucesso em todos os sentidos. Na relação dos aprendizes com a casa, na potência de aprendizado de técnicas durante as práticas, na frequência e disciplina dos aprendizes, e na adequação dos espaços para o trabalho cotidiano. Em 2019 fomos contempladas com a 26 edição do Fomento a Dança, que deu materialidade para ensaios do novo espetáculo do grupo, realização de estudos e do CICLO Mulheres Sapiens e muitas outras atividades ligadas à manutenção de nossa casa sede.